domingo, 9 de agosto de 2009

Quando as pessoas impostoras parecem queridas.

Adam Lepak olhou para sua mãe e disse: "Você é falsa".


Adam Lepek, 19, que sofreu um acidente de moto, com seus avós Al e Mary Kott em Weedsport
Foi numa terça-feira em julho, no fim do dia, e Cindy Lepak percebeu que seu filho de 19 anos estava exausto. Dias longos como esse, com horas de fisioterapia e exercícios de memória - "sofri um acidente de moto, bati a cabeça e tenho problema para lembrar das coisas; eu sofri um acidente de moto" - normalmente levavam-no a fazer esse tipo de acusação.

"O que você quer dizer com 'falsa', Adam?", ela perguntou.

Ele levantou a cabeça. "Você não é minha mãe de verdade", disse ele.
Sua voz mudou. "Sinto pena de você, Cindy Lepak. Você vive nesse mundo. Você não vive no mundo real."

Os médicos sabem há aproximadamente cem anos que um pequeno número de pacientes psiquiátricos se tornam profundamente desconfiados de seus relacionamentos mais íntimos, normalmente se isolando daqueles que os amam e cuidam deles. Eles podem insistir que o cônjuge é um impostor; que seus filhos são sósias; que uma enfermeira, um amigo íntimo, e até a família inteira são falsos, uma versão duplicada.

Delusões desse tipo normalmente são sintomas de esquizofrenia. Mas na última década, os pesquisadores documentaram delusões parecidas em centenas de pessoas que não são esquizofrênicas, mas têm problemas neurológicos que incluem demência, cirurgia cerebral ou golpes traumáticos na cabeça.

Um pequeno grupo de pesquisadores do cérebro está agora investigando as síndromes de falta de identificação, como são chamadas as delusões, em busca de pistas para um dos problemas mais confusos da ciência do cérebro: a identidade. Como e onde o cérebro mantém o "eu"?

O que os pesquisadores estão descobrindo é que não há um único "ponto da identidade" no cérebro. Em vez disso, o cérebro usa diferentes regiões neurais, trabalhando juntas, para sustentar e atualizar as identidades de si mesmo e dos outros. Aprender o que forma a identidade, dizem os pesquisadores, ajudará os médicos a compreenderem como algumas pessoas preservam suas identidades diante da demência progressiva, e outros, lutando contra lesões como a de Adam, às vezes conseguem reconstruir essa identidade.

"Quando escrevi meu primeiro caso como esse, em 1987, ninguém estava muito interessado; era uma curiosidade", disse o dr. Todd E. Feinberg, neurologista e psiquiatra da faculdade de medicina Albert Einstein e centro médico Beth Israel, que acabou de publicar um livro sobre o assunto: "From Axons to Identity" ["Dos Axônios à Identidade"]. (Os axônios são fibras nervosas.)

"Agora há uma explosão de interesse por esses casos", disse Feinberg, "por causa de sua relação com o eu, com a neurobiologia da identidade - com o que significa ser humano".

Quem é?
"Quem é essa pessoa, Adam?", perguntou um fisioterapeuta chamado Mike numa manhã recente, sustentando o corpo magro do jovem em frente a um espelho de corpo inteiro, com uma enfermeira ajudando a segurá-lo do outro lado. "Quem você vê lá?"

"Mike".

"Certo", disse Pat Taisey, a enfermeira, que passa a maior parte dos dias com ele em casa quando os Lepak estão no trabalho. "Mas quem mais você vê no espelho, Adam?"

"Você. Pat."

"Sim, mas quem mais?", disse ela.

Um sorriso incerto surgiu no rosto de Adam.

Há dois anos não era uma pergunta difícil de responder. Ele estava no primeiro ano na faculdade, tinha uma namorada e um grupo fiel de amigos. Um vegetariano, um louco por esportes, um mestre do sarcasmo, do tipo mais excêntrico. Ele era baterista da banda Sacred Pledge, de orientação "straight edge" (estilo de vida que proíbe as drogas, o álcool e o sexo promíscuo), que estava começando a fazer sucesso na cena hardcore da região de Syracuse.

Depois de seu último ano de colegial em Weedsport, ele partiu numa van com sua banda e viajou por todo o país, tocando em clubes e festas, dormindo no chão, procurando comida no lixo e dormindo na praia na Califórnia.

"Fiquei tão feliz que o deixamos ir", disse Cindy Lepak. "Ele decidiu que aquela vida não era para ele." Matriculou-se na faculdade comunitária Cayuga, na cidade de Auburn.

Ele estava atrasado para a aula numa manhã de outubro de 2007, voando numa leve subida da estrada Weedsport Sennett com a moto Honda Interceptor da família, quando viu - tarde demais - que um carro em sua faixa havia parado para fazer um retorno. Ele desviou do carro; Adam estava de capacete, mas perdeu o controle da moto e rolou com força sobre o asfalto. Ele passou a maior parte dos seis meses seguintes num estado quase vegetativo, mudo e praticamente imóvel.

O diagnóstico foi dano axonal difuso. "A definição do livro significa basicamente um golpe que desliga o monte de fios responsáveis por nos manter conscientes", disse o dr. Jonathan Fellus, neurologista do instituto Kessler para Reabilitação em West Orange, Nova Jersey, que supervisionou a recuperação gradual de Adam. "É como se as principais rodovias tivessem sido atingidas e agora o cérebro tem que usar estradas menores para funcionar. Mas cada cérebro responde de um jeito diferente. Eu desisti de fazer previsões."

Os pesquisadores que capturaram imagens do cérebro enquanto ele processa informação relacionada à identidade pessoal perceberam que várias áreas ficam particularmente ativas. As chamadas estruturas corticais da linha média se parecem com o núcleo de uma maçã, saindo dos lobos frontais próximos à testa e indo até o centro do cérebro.

Essas áreas frontais e da linha média se comunicam com regiões do cérebro que processam a memória e a emoção, no lobo médio-temporal, localizados em profundidade, abaixo de cada uma das orelhas. E os estudos sugerem fortemente que durante as delusões da identidade, esses centros de emoção ou não estão bem conectados às áreas da linha média frontal, ou não fornecem informações de forma adequada. A mamãe se parece e soa exatamente como a mamãe, mas a sensação de sua presença é perdida. Ela parece de certa forma irreal.

A delusão de identificação clássica é chamada síndrome de Capgras, que foi batizada a partir do psiquiatra francês dr. Jean Marie Joseph Capgras, que junto com o dr. Jean Reboul-Lachaux descreveu em 1923 o caso de uma paciente de 53 anos "que transformou todas as pessoas ao seu redor, mesmo as mais íntimas, como seu marido e sua filha, em vários e inúmeros dublês".

Numa análise desses casos publicada em janeiro na revista "Neurology", o dr. Orrin Devinsky, neurologista da Universidade de Nova York, documentou que as pessoas com delusão normalmente têm mais danos no hemisfério direito do que no esquerdo. O pensamento linear e a linguagem tendem a ser funções predominantes no hemisfério esquerdo, enquanto os julgamentos holísticos - de entonação ou ênfase, por exemplo - tendem a ser processadas mais do lado direito. Devinsky argumenta que quando as pessoas não sentem um brilho emocional familiar na companhia de um parente ou uma pessoa querida, o hemisfério esquerdo, sem a inspeção do hemisfério direito, danificado, resolve o conflito com sua lógica categórica. A pessoa deve ser uma impostora.

"E se você tem outros danos nas áreas corticais que checam a realidade, que fazem os julgamentos sobre o que é certo ou errado, então você não têm como corrigir esse erro", disse Devinsky.

Nos melhores dias, como na manhã da fisioterapia, os centros emocionais de Adam parecem se religar aos circuitos que funcionam em seu cérebro. Depois de alguns momentos observando sua imagem no espelho, seu sorriso mudou de incerto para malicioso e respondeu à pergunta dos terapeutas.

"Eu?", disse ele.

Irmão, amigo e filho
Depois do acidente, o irmão mais novo de Adam, Nick, ajudou o máximo que pode, e uma das formas de fazer isso, segundo os especialistas, é simplesmente agir como irmão. Nick fez o seu melhor.

"Eu o deitei no chão da cozinha outro dia, e segurei um cubo de gelo sobre sua cabeça e deixei pingar sobre sua testa; um tipo de tortura chinesa com água", disse Nick. "Ele ficou maluco, ficou muito irritado. Mas depois teve um ótimo dia".

Ninguém sabe quais tratamentos ou exercícios podem levar um cérebro danificado a preservar ou reconstruir a identidade coerente - a asfaltar as estradas neurais periféricas. Mas os neurocientistas geralmente concordam que isso pode acontecer. O cérebro é "maleável", sugerem as pesquisas recentes; áreas intactas podem recrutar tecido cerebral saudável das proximidades para contornar os danos e compensar pela perda de função.

Isso não parece acontecer, entretanto, sem esforço; para redirecionar o tráfego para outras vias, o cérebro precisa do tráfego, dizem os cientistas. Ele precisa estar ativo, resolver problemas, enfrentar expectativas sociais.

Para pessoas que estão se recuperando de sérios danos cerebrais, vários experimentos sugerem que a esperança está exatamente com aquilo que foi perdido, ou seja, o contato com um ambiente social familiar.

Em um dos estudos de imagens cerebrais de 2005, os neurocientistas de Nova York descobriram que o som da voz de uma pessoa querida ativava circuitos amplamente distribuídos em dois pacientes com danos severos que só de vez em quando conseguiam responder a comandos. No ano passado, uma equipe de neurocientistas espanhóis reproduziu a mesma descoberta.

Nos estudos de demência, os pesquisadores descobriram que algumas pessoas que permanecem lúcidas até uma idade muito avançada têm cérebros que pareciam tomados pelo mal de Alzheimer. Muitos deles continuavam sociáveis até o fim, participando de jogos de cartas ou conversas com amigos, coisas que exigiam seu esforço mental.

Durante seus primeiros seis meses na Kessler em Nova Jersey, enquanto estava deitado e mudo, Adam ouviu muitas vozes familiares. Sua mãe esteve ao seu lado todos os dias; seu pai viajava quatro horas desde Nova York todo fim de semana. Sua namorada, Sarah Huey, fazia visitas junto com a mãe a cada quinze dias. Seus amigos o visitavam em grupos.

Logo ele começou a mover seu polegar em resposta a perguntas e comandos - um sinal certeiro de que ele havia entrado num estado de consciência mínimo, uma transição necessária para recobrar a total consciência. "Foi muito difícil no começo", disse seu pai, Mike Lepak.

"Você simplesmente espera que possa de alguma forma dar uma partida em seu cérebro."

Em casa ele experimentou outro tipo de familiaridade e começou a andar, sem muito equilíbrio, e falar, até então em breves sentenças.

Sua mãe ficou responsável por grande parte do trabalho difícil de cuidar dele em casa: treinos de memória, perguntas constantes, a contratação de uma enfermeira durante o dia, além de discutir com o plano de saúde. Os Lepak conseguiram tratá-lo com uma combinação de seguro privado e ajuda estadual e federal. O pai construiu uma extensão na casa para tornar mais fácil a movimentação de Adam; ele ainda passa a maior parte do tempo numa cadeira de rodas.

Ainda assim, o máximo possível, as pessoas em sua vida começaram a tratá-lo como Adam. "Acho que essa é a minha oportunidade de descontar tudo o que ele fez comigo", disse Nick. "Ele é meu irmão."

Os amigos o visitam com frequência e o levam para almoçar, para fazê-lo rir.

Sentados à mesa da sala de jantar numa tarde recente, oito deles contaram histórias sobre a época anterior ao acidente. O centro da atenção pareceu carrancudo a princípio. Ele reagiu depois de ouvir algumas histórias familiares. A história sobre como eles roubavam sacos de doces estragados de uma cafeteria próxima e os atiravam contra os táxis. A vez que ele fez com que um amigo caísse da cadeira com um explosivo bem posicionado. As risadas aumentavam a cada história. Adam mostrou um sorriso, e então, depois de um tempo, o grupo ficou quieto.

"Você tem uma história, Adam?", disse um dos amigos, Sean Steinbacher.

"Isso, conta", disse outro, Shane DiRisio. Ele não estava brincando.

"O que há de errado com você, Adam? Você não tem uma história?"

Ele não tinha. Ele tinha um comentário. Ele os olhou com carinho.

"Esses caras", disse ele com um sorriso, "não prestam".

Começando de novo
Feinberg, do Albert Einstein, vê as delusões de identificação como defesas psicológicas primitivas, como resultado de danos aos lobos frontais direitos que a maioria desses pacientes têm. Essas defesas incluem a negação de que a doença existe, a projeção do problema nos outros ou a fantasia de que a vida diária é de certa forma irreal.

"Essas são as defesas de uma criança de 3 a 8 anos", disse Feinberg. "Mas é importante compreender que essas defesas são uma adaptação positiva. O cérebro está lutando para sobreviver".

A capacidade de inibir essas defesas, de compreender que nem todos as têm, é uma prova de que as áreas frontais do cérebro estão voltando aos trilhos, disse ele.
Nas últimas semanas, Adam tem mostrado cada vez menos delusões. Uma viagem de uma hora de carro em julho para um rancho em Groton, Nova York, que oferece passeios da cavalo para pessoas com deficiências, a mente de Adam estava agitada. "Mãe", chamou ele repetidamente. "O que aconteceu comigo?"

"Você me diz, Adam", disse sua mãe em determinado momento. "Você acabou de me dizer há um minuto. Você sabe o que aconteceu. Você sabe."

"Eu não quero dizer a você", disse ele.

"Por que não?"

"Porque você acha que sou louco", disse ele.

"Não, não acho. Diga."

"Não", disse Adam Lepak, e olhou pela janela por um momento, parecendo perdido em pensamentos.

"Mãe?", disse ele, ainda olhando pela janela.

"Sim, Adam."

"Acho que eu sofri um acidente de moto".

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