quarta-feira, 8 de julho de 2009

Do mundo virtual ao espiritual.

Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da
Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos,
recolhidos em paz em seus mantos cor de açafrão. Outro dia, eu
observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera
cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos,
geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado
café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro
café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: 'Qual dos dois
modelos produz felicidade?'

Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e
perguntei: 'Não foi à aula?' Ela respondeu: 'Não, tenho aula à tarde'.
Comemorei: 'Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até
mais tarde'. 'Não', retrucou ela, 'tenho tanta coisa de manhã...'
'Que tanta coisa?', perguntei. 'Aulas de inglês, de balé, de
pintura, piscina', e começou a elencar seu programa de garota
robotizada. Fiquei pensando:
'Que pena, a Daniela não disse: 'Tenho aula de meditação!'

Estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente
equipados, mas emocionalmente infantilizados. Por isso as empresas
consideram agora que, mais importante que o QI, é a IE, a
Inteligência Emocional. Não adianta ser um super executivo se não se
consegue se relacionar com as pessoas. Ora, como seria
importante os currículos escolares incluírem aulas de meditação!

Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960,
seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta
academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra
malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à
malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos:
'Como estava o defunto?'. 'Olha, uma maravilha, não tinha uma
celulite!' Mas como fica a questão da subjetividade? Da
espiritualidade? Da ociosidade amorosa?

Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na
realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo
é virtual. Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega
aids, não há envolvimento emocional, controla-se no mouse. Trancado
em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em
Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizi­nho de
prédio ou de quadra! Tudo é virtual, entramos na virtualidade de todos os valores, não há compromisso com o real! É muito grave esse processo de abstração da
linguagem, de sentimentos: somos místicos virtuais, religiosos
virtuais, cidadãos virtuais. Enquanto isso, a realidade vai por outro
lado, pois somos também eticamente virtuais…

A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o refinamento do
espírito. Televisão, no Brasil - com raras e honrosas exceções -, é
um problema: a cada semana que passa, temos a sensação de que
ficamos um pouco menos cultos.

A palavra hoje é 'entretenimento' ; domingo, então, é o dia nacional
da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai
lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da
tela. Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a
ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: 'Se
tomar este refrigerante, vestir este tênis,­ usar esta camisa, comprar este carro,
você chega lá!' O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede
desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba­ precisando de um analista.
Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose.

Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus
pacientes. Colocá-los onde? Eu, que não sou da área, posso me dar o
direito de apresentar uma su­gestão. Acho que só há uma saída:
virar o desejo para dentro. Porque, para fora, ele não tem aonde ir!
O grande desafio é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo, começar a
ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento
globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver
melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são
indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.

Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém vai à
Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve
procurar saber a história daquela cidade - a catedral é o sinal de
que ela tem história. Na Idade Média, as cidades adquiriam status
construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping
center. É curioso: a maioria dos shopping centers tem linhas
arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de
qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingos. E ali
dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos,
crianças de rua, sujeira pelas calçadas....

Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela
musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas
aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados
por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no
reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito,
entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode
comprar, certamente vai se sentir no inferno... Felizmente, terminam
todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo
suco e o mesmo hambúrguer do McDonald's…

Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas:
'Estou apenas fazendo um passeio socrático.' Diante de seus olhares
espantados, explico: 'Sócrates, filósofo grego, também gostava de
descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas.
Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: 'Estou
apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz.'

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Luis Fernando Veríssimo
e outros, de 'O desafio ético' (Garamond), entre outros livros.

Recebi da Márcia Camporezi - 21/02/2009

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